terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Só restou o amor


Um dia abandonei a segurança do código de conduta dado pela religião. Tornei-me testemunha viva da derrocada da coragem de viver só. Coloquei em seu lugar um nada que caracteriza-se hoje por meu próprio vazio.

É o que me ocorre ao final da leitura do primeiro capítulo: as primeiras sensações por compreender o tema do livro como minha própria experiência de vida.

Botton* afirma ser inútil a pergunta sobre se uma religião é verdadeira ou falsa.
É melhor perguntar-me o quanto ainda das orientações da religião subjazem na minha forma de viver.
Quando, por exemplo, tenho aquela nítida sensação de que quem me prejudica com deliberada intenção de maldade será questionado ou interpelado em algum momento por uma mão invisível e justa, isto compõe um preceito do cristianismo.
Quando, por exemplo, eu experimento o sentimento dualístico em relação à tradição das práticas de viver em família e criar os filhos, questionando-o e, ao mesmo tempo, retirando dele uma inspiração para viver.
Ao que o livro de Botton me projeta mesmo é à façanha de me intrometer em um dos parágrafos ao final do primeiro capítulo, modificando-o timidamente:
"[...] este livro não tenta fazer justiça a religiões particulares; elas contam com seus próprios defensores. Em vez disso,[...]" este livro recomenda que o amor é o único sentimento que poderia "[...] eliminar os aspectos mais dogmáticos das religiões a fim de extrair algumas facetas que poderiam se mostrar oportunas e reconfortantes a mentes céticas contemporâneas confrontadas com as crises e as amarguras da existência finita num planeta conturbado". O amor pode "[...] resgatar parte do que é maravilhoso, tocante e sábio em tudo o que não mais parece verdadeiro".
O livro de Botton não intenciona falar de amor, porém, não pude parar de pensar que é ele ainda a quem todos queremos conhecer, pelo menos uma vez na vida. O livro me incita a pensar que quem teve a experiência da religião, mesmo não a praticando mais, está em melhores condições de reconhecer o amor quando ele aparecer.
Religião para ateus* (Alain de Botton)

domingo, 16 de outubro de 2011

Entre 1599 e 2011: o que há com o tempo?


Shakespeare, bem antes de mim,
notou que do pensamento se depreendem sensações que gostaríamos de
apagar. Ah, se pudéssemos escolher nossos pensamentos!

"[...] Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal-prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
–Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação [...]".

Nada deve ser muito mudado.
Está tudo bem!
Hoje o dia amanheceu e eu me mexi na cama.
Fiz o desjejum como sempre.
O meu corpo correspondeu em todos os sentidos.
Estava tudo bem.
A chuva da madrugada molhou as folhas das
árvores e elas tornaram-se brilhantes como já era esperado.
O dia segue, as horas passam, o mundo é o mesmo.
Está tudo bem!
O domingo segue seu próprio rumo.
Deve haver os que hoje têm o dia mais feliz de suas vidas.
Deve haver os que hoje acreditam viver seu pior dia.
E eu acho que está tudo bem...
A não ser por pensamentos, que estranhamente me produzem
uma terrível angústia e sensação de perda e desintegração de mim.
Está, parece, tudo bem!
Se não tivesse esses pensamentos, poderia deixar o dia passar.
Poderia deixar a vida passar.
Mas há os pensamentos, esses malditos perseguidores.

sábado, 15 de outubro de 2011

Madrugada louca: morrer para dizer que viveu?

Minha adolescência foi cerceada em tantas coisas...
Tudo tinha um comedimento exemplar: não sorrir à toa, não brincar em exageros, não falar muito alto, não chamar a atenção, não viver...
Havia pois o julgamento social dos comportamentos, o que nos ensinou muito precocemente que era mais salutar que ninguém comentasse nossa existência.
A semelhança com colégios internos do início do século passado não era exatamente um comparação exata, mas beirava o mesmo espírito.
Aprender abster-se de viver grandes emoções era um ideal propagado e empenhado.

Depois, quando nos tornamos adultos não havia mais porque vigiar. Estava lá a autocensura. Uma coisa lá dentro que diz "não" o tempo todo. Uma coisa que segura seguramente. Que encerra a vontade de sair e viver livremente. Algo que dá um conforto pelo fato de se poder reter da maioria das emoções. Um suposto porto seguro plantado com profundas raízes dentro de você.

Pensando nessa vida que nos foi ensaiada, tive a sensação de que a madrugada é mesmo louca e por isso nos detiveram tantas vezes. Será que foi para preservar nossa vida? Uma motocicleta insandecida passeou na minha rua e deixou a madrugada com ares daquela liberdade vigiada da adolescência. Seu condutor parecia dizer que para mostrar que viveu deveria morrer na velocidade do vento. E eu me encolhi na cama pensando se ele sofreria se seu veículo desgovernado o levasse para a morte.

Sobre pequenas mortes nossa adolescência nos ensinou com maestria.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Foi assim...

Cada época carrega suas peculiares formas de ser no mundo.
Minha época de ter catorze anos não vejo mais muito em meu entorno.
Haverá aquelas meninas e aqueles meninos com histórias bem menos coloridas do que a minha, assim como a minha tem bem menos cores do que a de outros e de outras de realidades longe de mim.
As experiências não podem ser transferidas. É preciso que as tenhamos sem intermediários. E é desta vivência que vem minha inspiração de contar.
Despreocupo-me se ela vai parecer mais ou menos dramática se comparada com outras histórias. Preocupo-me mais com a exatidão dos sentimentos que emanam dessa época, numa tentativa de me desvencilhar do peso que as vivências imputam aos contadores.

Catorze anos é como nada. É a impotência em vida. Não se é mais criança, nem se é adulto.
Eu não sabia qual era meu lugar no mundo. Não fazia a menor ideia de meu peso, da minha fome, da minha sede, do meu querer e de meu poder.
Subir de tarde na ameixeira talvez fosse resquício da infância.
Mas já havia certa culpa em gastar o tempo com meninices. Assim, logo abandonei essa prática. Eu estava crescendo e devia me preocupar como se ganhava o sustento.
Eu era desprovida da capacidade de acreditar que meus sonhos seriam levados em conta. Nisso nunca me enganei.

Logo, nem quinze haviam sido comemorados e eu fui ceifada pela vida a começar ter pensamentos organizados e responsáveis.
Sim, você vai trabalhar. Será professora. Começará em poucos dias. Como é digna essa tarefa!

E tudo se encaixou a partir daí.
Não sei o que pode ser salvo da minha ingênua imaginação sobre como queria viver o futuro. Sei que não incluía trabalhar de catorze para quinze, quando eu mesma ainda carecia de colo e olhar de cuidado de meus pais.

A realidade ficou mais dura ainda. Isso me ensinou a ser forte e não sucumbir fácil diante das intempéries. Talvez quem devesse me acolher tinha começado ainda mais cedo a sofrer da doença da vida adulta. Com esse pensamento, o silêncio foi a saída.

Quase vinte e três horas. Só alguns estudantes na rua. Todos indo para suas casas. Para o aconchego de suas camas, seus lençois, seus familiares ainda acordados, esperando-os, talvez.

Chegando à casa que me receberia, que não era minha, essa ficava bem longe, ainda tinha, comumente, acordar quem me abrisse a porta, batendo vigorosamente, com aquela sensação desagradável de estar incomodando a paz alheia.

Tarde para quem tinha cartorze. Cedo acordar na manhã seguinte. Ninguém era responsável por meu bem estar. Disso me ressentia.

Café preto com açúcar, apenas. Ônibus tinha de ser pego.Voltar para casa?
Não, no caminho parar, de estômago vazio, desde o dia anterior, cinco da tarde.
- Você quer dinheiro para um sanduíche?
- Não, não precisa.

Talvez precisasse mas a pergunta dispensava a gentileza de quem devia saber de minhas necessidades. Se não sabia é porque não as via.

Dez horas da manhã. Primeira refeição em muitas horas. Ah, havia a merenda, que era parte de meu trabalho preparar. Professora que fazia merenda para as crianças. Ela, criança crescida e suas crianças pequenas. (Hoje o problema é recusar a comida, que torna os adolescentes acima do peso. Meu problema era a magreza, a falta do que comer, a refeição que tinha de ser preparada, caso contrário não se comia).

Onze e meia. Finalmente a volta para casa. Trabalhar e estudar, ficar tantas horas sem a assistência de quem deveria saber de mim e finalmente a volta para casa.
E, quem estava lá? Ninguém que lembra essas mães que esperam os filhos com almoço na mesa. Sempre me pergunto se essas mães existem.

A cozinha vazia e fria. Está com fome? Faça-se algo. Estão no trabalho todos os outros. Devia ficar feliz porque o trabalho nunca faltou. Mas e o meu vazio de menina de catorze anos, quem preencheria com uma comida quentinha, um olhar atencioso e minha cama todas as noites?

*Inspirado por uma menina de catorze anos que eu não conheço.

domingo, 13 de março de 2011

Outro domingo...


A janela está aberta. É dia.
Mesmo através da cortina, esse cheiro de fumaça ao longe, de alguma chaminé, entra e esse odor de terra úmida da chuva abundante de ontem, lembra minha mãe.
As manhãs de domingo de março eram assim na minha infância.
Recorrente íamos ao culto ou a alguma festa de confirmação.
Só a imagem de minha mãe, toda arrumada, assalta-me a memória.
Produziam-me enfado e apreensão, sobretudo, aqueles domingos...
Mas... às vezes, o lugar era tão aprazível, surpreendente com frutas da época
nas árvores frondosas que aqueles domingos são os únicos
dos quais tenho saudade de verdade.
Eu lamento não podê-los oferecer a minha filha Camila.
Não há mais mãe, nem festas de confirmação, nem frutas da época,
nem lugares como aqueles.
Há outros domingos, que podem ser contraditórios porque a memória sempre é autoritária. Ela seleciona o que quer que seja lembrado.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A nudez do rei

Quando precisamos assistir ao espetáculo a partir do galinheiro do teatro, nem sempre saímos do show extasiados de prazer. Assistiríamos à apresentação e concomitante às reações dos espectadores. Como nos alertaria Saramago, estamos sujeitos, nesse ponto estratégico, a ver "as falhas" da coroa do rei. Assim, se entre os espectadores houvesse um rei, veríamos, quem sabe, que o serviçal poliu a coroa somente na parte frontal; veríamos, talvez, que o rei resmunga da dor que a coroa o impinge; poderíamos, oportunamente, testemunhar que o rei não é tão majestoso assim ao cochilar durante parte do espetáculo; perceberíamos que no silêncio do rei, nem sempre está a atenção que supomos; notaríamos, por instantes, que no semblante do rei os trejeitos são vícios antigos; e, por fim, poríamo-nos a indagar o que aprendemos com essa visão. No teatro sem camarote, de olhos cerrados, os odores são lembranças vívidas e fazem chorar. No teatro sem camarote, a vida tem outro cheiro.


* Este texto é dedicado a todos os reis que moram em castelos de areia.