sábado, 3 de outubro de 2020

O que é escrever?

Hoje não é dia qualquer.

Poderia ser o dia de escrever o dia todo.

Eu queria que houvesse um dispositivo em minha cabeça que registrasse todas os pensamentos que me ocorrem de madrugada. Rememoro fatos e fatos de minha vida. Relembro de pessoas e histórias que resultaram desse contato. E as frases me vêm tão bem elaboradas, tão harmoniosas. E digo a mim mesma: "Essa memória pode resultar num belo texto. Escreva amanhã." 

O amanhã chega e eu desvio de escrever como se fosse a tarefa mais complexa do mundo. E é mesmo. Eu sei, porque nunca pensei em algo que eu tenha escrito no dia seguinte. Como vou escolher escrever se nem eu mesma consigo ver nisso algo com que valha à pena gastar tempo?


Escrever dói. Escrever exaure. Escrever alivia o peso dos ombros em troca de boa produção. Escrever é mágico. Escrever é arte. Escrever não nasce conosco. Escrever é um atributo pelo qual se pode apaixonar. Escrever eterniza uma ideia. Enche de vida uma vida. Escrever provoca fuga do agora. Resgata o melhor de alguém. Escrever marca em brasa um sentimento. Aprofunda uma fissura. Escrever arrebata e afasta. Coloca as ideias nas palavras. Junta alegria e sabor alaranjado. Escrever ressuscita os mortos. Traz à vida o melhor deles. Escrever é como a água fria ao descer a garganta e morna, a do banho. Escrever é fazer algo que a vida não sabia existir. Escrever é chorar a seco. É lavar como a chuva as plantas sedentas. Escrever é ter dedos e mãos para além do movimento. É estender a vida e soprar coisas que afagam ouvidos atentos. Escrever é sentir uma alegria sem ganhar, sem comprar, sem ser premiado. Escrever é o resultado de uma escolha. Uma escolha que resulta de um repertório enorme de palavras dentre as quais melhores são as não ditas.  

* Este texto é dedicado à Marli, minha tia amada, que faz aniversário hoje. Que todas as palavras  escritas por ela nos últimos anos de vida sejam seu autorretrato.  

 


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Cotidiano e angústia




Faço tudo.

Menos escrever.

Mas eu sei do porquê.

É que tanto faz o que eu faço, pois o que quero é aplacar minha angústia da vida cotidiana.

Bem provável seja que eu aumente minha angústia se eu deixar de fazer o que elejo como algo que deva ser feito, caso escrevesse nessas horas. 

Escrever é tão eficaz quanto lavar louça. 

Eficaz, mas não prioridade. 

Noto que prioridade são os afazeres da casa, dos quais enjoo muitas vezes, mas dos quais não consigo abrir mão se quero me sentir menos angustiada. É como uma fórmula. Tacanha, limitante. Inconsciente razão.

É uma grande fonte de angústia quando os móveis estão empoeirados. Quando o chão tem resquícios de uso e contém partículas de comida, outros restos. É fonte de angústia a sacada cheia de folhas secas, de gotas de chuva que me impedem de pisar ali. É fonte de angústia quando chega o anoitecer e eu não tomei banho. A angústia vem pelo fato de temer que sentirei preguiça e consequente irritação por ser tão insolente e ousada em ter preguiça. E talvez porque suponha não querer me mexer e me dar essa tarefa tão chata que é tomar banho. 

A vida é um rolo compressor que me esmaga se não ando para frente com ela. Eu gosto muito de andar para frente. Gostaria de viajar por aí de dia e fazer coisas de lugar em lugar. De ter uma agenda de afazeres leves, como entregar algo, como passear e sair do lugar. Como estar distraída de mim e de minhas manias para não sofrer a estagnação que a preguiça me impõe. 

Quando eu era criança tinha tarefas e tarefas. As mesmas de hoje ainda. Se, acaso eu não as fizesse, ou se não aparecesse para cumpri-las, a sensação que me dava era que poderia se passar um enorme espaço de tempo, um, dois, três anos e essas mesmas tarefas estariam ali me esperando. 

Hoje, ao invés de diminuir meus afazeres, eu os acumulo, eu os invento. Ninguém conseguiu me aliviar das minhas obrigações. Impuseram-me novas em troca de amor e carinho. Eu tenho um marido que paga a comida. Mas eu tenho que prepará-la. Se um dia não quiser fazer a comida, o arroz, a carne, os ovos, os tomates, as cebolas, as cebolinhas, o sal, o açúcar, a manteiga, o bacon não vão pular fora do armário e da geladeira para as panelas e se cozinhar. 

Se eu quiser continuar casada tenho que dar conta de minha tarefa. Eu tenho uma coisa, mas não tenho a outra. Eu tenho com quem dormir, mas não tenho liberdade para não cumprir minhas tarefas. 

Quem me convoca ao compromisso não é o outro. Sou eu mesma. Mascaro alguma coisa que eu ainda não sei. Sei que com o que faço diminuo minha angústia. 

E quando a angústia ultrapassa passar pano de lã no chão, tirar o pó dos móveis, esfregar a pia do banheiro, recolher os cabelos no chão, cozinhar longas e longas horas, molhar e molhar as plantas, passar aspirador, dobrar roupas... Eu escrevo!

Por isso, não sou escritora. Eu não invento histórias. Eu não escrevo do mesmo jeito que lavo milhares de pratos. Eu não coloco "o escrever" como um trabalho que tem de ser feito. Eu não tenho ideias.

Pode ser... Pode ser que esse esvaziamento da escrita esteja na adolescência, quando eu escrevia  poemas e pequenas histórias, as quais minha mãe considerou sem importância. Pode ser também que o desdém de minha mãe não seja a causa de não ter me empenhado para ser escritora. 

Talvez a falta de valorização dos meus escritos tenha coincidido com o fato de eu apenas querer escrever por angústia. Nesse sentido, tanto faz pensar que um não incentivo ou a falta de talento sejam a causa de não ter me tornado escritora. 

Pergunto: qual a importância que tem para mim a minha escrita? Talvez de um a cem, dois. Dois é como nada. Dois perde para noventa e oito praticamente cinquenta vezes. Então, no fundo, fui eu mesma a sabotadora de minha escrita. Sou péssima leitora, sou péssima escritora. Não dou a mínima aos livros e aos meus escritos. Isso é deprimente. Isso é feio. Isso é triste. Isso não é bom.    

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Tudo o que está perdido


Você vai perder...

não o lado direito da cama nova, que é só sua na verdade, faremos de conta

não as cinco prateleiras do guarda-roupa que eu lhe cedi um dia, nem a gaveta onde estão jogadas agora as suas roupas íntimas, tantas vezes arrumadas até que eu cansei

não a gentileza de receber suas roupas lavadas, dobradas ou no cabide

não a hora da intimidade pela manhã, como bem sei que sempre foi sua preferência

não o prato onde você distribui a comida confusamente

não o pote de cerâmica que eu trouxe de Frankfurt e você usa para depositar moedas


não a sempre certeza de encontrar seu chinelo já na entrada da porta de casa


não o meu silêncio, aprendido, porque você não sabe o que é contar as coisas do dia a dia

não a toalha de banho que sempre está lá, mesmo sabendo que ela não foi colocada pelo vento

não a minha disponibilidade materna de cuidar, controlar as datas e pagar as contas em dia, registrando tudo num caderno e eu fazendo de conta que acredito que isso é importante para você

não a minha companhia chata porque em certos temas acho você extremamente machista e por isso geralmente acabamos discutindo

não a suposta mulher que eu sou, achando que ninguém vai me substituir com facilidade

não a sua incapacidade de compreender que tudo pode ser analisado, refletido e dimensionado  filosoficamente

Não, não. Tudo isso é nada

Você vai perder ...
o meu amor porque me fez pensar que eu era importante, o brilho dos meus olhos quando me diz coisas como "você é linda", a minha crença no seu "eu te amo", o entusiasmo e a alegria de estar ao seu lado

Você vai perder a nós dois, pois deixou a porta do seu interesse aberta.